Publicado no jornal Tempo Medicina
Artigo do Dr. Ciro Costa*
"Errar é humano
Patient safety / Risk management é assunto muito discutido nos Estados Unidos, Austrália e Europa. Nos Estados Unidos com particular ênfase por vários motivos. Um deles foi o aparecimento de um livro — To err is human — que fala de cerca de 45 a 98 mil perdas de vidas por erros no sistema de saúde e de um número pelo menos 10 vezes superior em morbilidade séria com a mesma causa. O outro dos motivos é que a lógica da culpa, que existe no sistema, torna a Medicina mais defensiva, cada vez mais cara, por um lado, enquanto, por outro lado, os prémios de seguro de responsabilidade médica têm custos exorbitantes e aumentos exponenciais sempre que há uma decisão judicial com elevadas indemnizações.
No Estado de Nova Iorque, em 2004, o seguro de responsabilidade chegou aos 100 mil dólares/ano!!! Há muitos médicos que limitam ou mesmo abandonam a actividade por não poderem suportar o prémio de seguro. Há especialidades - por exemplo Obstetrícia — que «desapareceram» de alguns condados.
A tendência até agora tem sido culpar os médicos. Ao fim e ao cabo são eles que dão a cara e decidem. Na maior parte dos locais, projecta-se a responsabilidade dos actos nos médicos e a definição da qualidade assistencial exclusivamente na avaliação/punição da performance individual dos profissionais nas suas diversas vertentes.
Logicamente, sendo eles considerados os «culpados» devem ser castigados quando há algo que não corre bem e, por outro lado, para que tudo corra bem têm de ser «perfeitos» do ponto de vista técnico e científico. Para isso nada melhor do que «obrigá-los» a terem muitos conhecimentos, impondo a frequência de acções de formação - os créditos - e levando isso até ao extremo com a recertificação periódica para o exercício profissional.
Mas nos países do mundo em que isso é levado muito a sério, com formação médica contínua individual obrigatória organizada e recertificação profissional individual periódica, continua a haver um elevado índice de «erros médicos» como o provam diversos estudos (The Harvard study — 1991, The Utah/Colorado study — 1999, The UK pilot study — 2000, Tue quality of australian health care study — 1995, The danish pilot study — 2001, etc.).
A conjugação destes dois factores, Medicina defensiva e custos de seguro ligados à responsabilidade profissional, tornam, a curto prazo, o exercício médico quase impossível pela parte dos profissionais e com custos assustadores e proibitivos para a sociedade, colocando cada vez mais cidadãos sem acesso a cuidados de saúde. Ora isto não é aceitável em países civilizados.
Nos Estados Unidos há um forte movimento na sociedade envolvendo médicos, políticos, opinião pública e organizações para impor, por lei, um tecto (até 500 mil dólares) às indemnizações por danos não patrimoniais e, assim, limitar os custos de seguro nos orçamentos de saúde. Têm tido um sucesso limitado - até agora poucos estados adoptaram leis deste género.
Nova organização da prática médica
A prática médica terá também de ser organizada de outra maneira. É preciso mudar os processos de controlo, avaliação e actuação se quisermos ter êxito na guerra por uma Medicina de qualidade, centrada na segurança do paciente e diminuindo o risco da nossa actividade.
A nossa actividade é de alto risco, tal como, por exemplo, a indústria nuclear, a indústria química ou o transporte aéreo. Nestas indústrias há políticas de qualidade muito rigorosas que diminuíram drasticamente os erros e acidentes, pelo que teremos algo a aprender com eles. O risco de acidente ou erro na prestação de cuidados de saúde é comparado ao do montanhismo e ligeiramente menor que o bungee jumping!!! É um sistema muito pouco seguro mas poderia ser muito pior se não fossem os cuidados que os profissionais têm e a vigilância que há sobre o sistema.
Os voos charter e a indústria química revelam melhores níveis de segurança e, no topo desta lista de actividades de risco, temos o transporte aéreo regular, os caminhos-de-ferro e a indústria nuclear. Estas últimas actividades atingiram o topo da segurança porque alteraram os seus procedimentos e implementaram políticas adequadas.
A grande diferença está na forma como se olha para os erros. De uma maneira geral, num sistema organizado, os erros serão do sistema, resultam de várias falhas concorrentes e não dos indivíduos em si. Um erro deve servir para aperfeiçoar e melhorar o sistema de modo a evitar repeti-lo. E não se melhora o sistema castigando o vector do erro, mas sim analisando o que correu mal e o que se deve fazer para não voltar a acontecer. Uma política de castigo, vergonha e punição a quem é considerado o responsável da falha leva a que se tente desculpar, a esconder o problema ou a transferi-lo para outrem em vez de encarar a falha de frente, expondo-a para que seja possível evitá-la no futuro.
Portanto, temos de mudar a cultura das nossas organizações e utilizar os conhecimentos das ciências da segurança para tornar a nossa actividade mais segura.
Erros são causados por maus sistemas
O erro é próprio da actividade humana, não pode ser alterado por punição, mas pode ser evitado e podemos proteger os doentes das suas consequências. Na epidemiologia do erro, até agora, os erros eram falta de cuidado, davam origem a queixas, vergonha e punição e, por isso, considerava-se que se deveria insistir no treino individual para a perfeição.
Mas não, os erros são causados por maus sistemas e não por más pessoas. As queixas e a punição tornam as coisas piores. É muito melhor aprender com o erro e redesenhar os processos de actuação. Por isso começam a ser adoptadas políticas de prevenção e estudo dos erros nos serviços de saúde.
Devemos melhorar o desenvolvimento científico e técnico nesta área do conhecimento aproveitando e adaptando o que de melhor se faz em outras actividades mais avançadas em termos de segurança.
Há muito a fazer para melhorar as nossas hipóteses de evitar os erros:
- Adoptar medidas simples, como a obrigatoriedade de serem comunicados todos os acontecimentos adversos;
- Desenvolver sistemas padronizados e rigorosos de identificação dos doentes e dos locais da cirurgia;
- Criar bases de dados de efeitos adversos por comunicação voluntária;
- Fazer auditorias clínicas periódicas, como instrumento de aprendizagem de gestão de risco clínico.
- Promover cultura de informação e aprendizagem.
- Melhorar o relacionamento entre os diversos níveis de decisão, alterando os argumentos de autoridade e hierarquia nas instituições para decisões partilhadas e discutidas transversalmente.
- Fazer campanhas de formação em questões específicas, como por exemplo, lado errado da intervenção, prevenção de infecções, identificação de doentes, prevenir erros de medicação.
A Ortopedia está em foco nestes problemas. Num estudo italiano, a especialidade registava 16,5% das queixas, contra 13% da Oncologia, 10,6% da Cirurgia e 10,8 % da Ginecologia. Por isso quando se fala e discute «erro médico», a Ortopedia e os ortopedistas devem estar na linha da frente.
*Ortopedista no Centro Hospitalar
de Coimbra (Hospital dos Covões) "