Anjos e demónios dos medicamentos
Artigo de João Paulo de Oliveira
Será o enquadramento legal em vigor suficiente para evitar conflitos de interesses entre médicos e companhias farmacêuticas? Para dez médicos americanos, liderados pelo Prof. Troyen Brennan, da Harvard University, não. Para o Prof. Paul Rubin, da Emory University, restringir a capacidade de comunicação da Indústria Farmacêutica (IF) porá em causa a Saúde Pública.
O actual contexto não poderia ser mais propício ao debate das relações entre médicos e IF. Persistem ainda os ecos da retirada do mercado de vários medicamentos, agravada por posteriores alegações de subtracção de dados «inconvenientes» sobre a sua segurança por parte dos investigadores e pelo envolvimento de prestigiadas revistas médicas na divulgação de informações desvirtuadas que os seus editores tomaram como boas; há cientistas que assumem ter falseado o resultados das suas pesquisas e utilizado o bom nome daquelas publicações para construírem uma glória efémera ou obterem dinheiro de forma menos lícita; há a polémica sobre os ghostwriters, médicos que serão principescamente pagos para assinar artigos com informação distorcida que não escreveram, credibilizando-os. E, last but not the least, há a crise económico-financeira em que os sistemas de Saúde procuram flutuar: em 2005, parlamentares ingleses quiseram policiar o marketing farmacêutico para reduzir a factura em medicamentos, alegando que muitos fármacos são prescritos sem que se conheça o seu perfil integral de efeitos secundários. Os seus esforços não foram avante, porque a IF é a terceira actividade mais lucrativa e pujante do país, e a ministra da Saúde, Jane Kennedy, afirmou à BBC ser do interesse do Governo britânico que a IF «mantenha a sua forte posição», sem prejuízo de continuar a pugnar por uma relação cada vez mais equilibrada entre as partes.
Tensão matricial
Estes afloramentos de uma tensão matricial que governa as relações entre a IF, os médicos e o poder ocorrem por vagas, mas a actual, tantos são os casos e os aspectos, gera desconfiança, mesmo um descrédito crescentes sobre a Indústria Farmacêutica e sobre os cientistas que para ela ou com ela trabalham, e não pode, por isso ser ignorada. O artigo de Brennan et al. é prova dessa inquietação. Publicaram um artigo na edição do passado dia 25 da JAMA, no qual propõem um conjunto de novas medidas restritivas da interacção entre médicos e IF, baseados em estudos que quantificam os aspectos negativos dessa interacção para os profissionais de saúde e para os doentes.
As medidas propostas incluem a proibição de aceitação de presentes, independentemente do seu valor, e a regulamentação da oferta de amostras e do financiamento da participação em congressos e simpósios. Na raiz destas propostas está, por exemplo, o artigo de Dr. Ashley Wazana, publicado também na JAMA em Janeiro de 2000.
Neste artigo, o psiquiatra da Universidade de Montreal, no Canadá, analisou 29 estudos sobre o relacionamento entre médicos e Indústria Farmacêutica, e concluiu, na maioria deles, pela existência de resultados negativos dessa interacção, nomeadamente prescrição não-racional, e prescrição crescente de fármacos mais recentes e caros sem vantagem demonstrada sobre os antigos da mesma classe, tendo os médicos demonstrado «falta de preocupação com a influência de presentes, material promocional, refeições e almoços de trabalho», que estarão na origem do favorecimento da companhia com a qual interactuam. Isto apesar de, como reconheceu o autor do artigo em declarações a The Medical Post, a introdução de guidelines nesta área ter «alterado significativamente as coisas».
No editorial que acompanhava o artigo da JAMA, o Dr. Robert Tenery, do American Medical Association Council on Ethical and Judicial Affairs, temperava as conclusões do Dr. Wazana, notando que «os delegados de informação médica podem ser uma valiosa fonte de informação para os médicos» e que «seria irrealista propor que todas as refeições, entretenimentos ou financiamentos são anti-éticos».
Outro ângulo
Que «as coisas» não estão bem é evidente, mas como não há só uma verdade, será curioso examiná-las de outro ângulo, o que fez o Prof. Paul Rubin, na Regulation (Verão de 2005), a propósito do artigo do Dr. Wazana.
Escreve o docente de Economia e Direito na Emory University: «Os delegados de informação médica (DIM) recebem incentivos para venderem “excessivamente” os seus produtos; mas também fornecem informação de confiança acerca dos benefícios dos seus fármacos. Ao analisar os efeitos dos esforços de promoção e de vendas, é importante considerar os aspectos positivos e negativos do marketing farmacêutico». Ora, «a literatura é geralmente crítica daqueles esforços, centrando-se nos aspectos negativos da promoção (...) e embora se exprima em termos empíricos e científicos, e faça uso de dados, sofre de algumas fraquezas», acrescenta o Prof. Rubin, que não hesita em afirmar: «Se os mesmos métodos e nível de rigor fossem utilizados na análise de outro problema — por exemplo, a efectividade de um medicamento —, as publicações científicas rejeitariam a investigação e a FDA não aprovaria o fármaco». O articulista aponta, na análise em apreço, viéses de selecção, insistência no estudo de fármacos inefectivos e uma escolha de endpoints da qual, como o próprio Dr. Wazana salienta, está ausente, em todos os estudos revistos, o bem-estar do doente. O resultado, escreve, é que «não existe evidência na literatura de malefício para os doentes da promoção e do marketing farmacêutico; o que existe é evidência ambígua e fraca de prescrição imprópria com base num estudo holandês de 1982». Os outros estudos «mostram simplesmente que o contacto com os DIM cria uma impressão favorável da companhia e que os presentes levam a um contacto mais frequente com os DIM. Estes efeitos seriam maléficos se a promoção levasse a prescrição incorrecta ou lesiva para a saúde», mas não existem dados que o demonstrem.
De acordo com o articulista, uma das principais bases da economia de mercado — e ainda não inventámos outra menos má — é que «as actividades realizadas em proveito particular levam muitas vezes a benefício público». A seu ver, isto também é verdade para a IF.
O cerne da questão
No fim do artigo, o Prof. Rubin vai ao cerne da questão. Em 1983, Avorn e Soumerai sugeriram que um centro académico poderia fornecer melhor informação aos médicos do que os DIM, e que a Medicaid, a HMO ou a Veteran’s Administration poderiam financiar estes programas. Até hoje, nota o articulista, «nenhuma destas entidades se dispôs a fazê-lo (...). Não admira, porque o custo de fornecer informação aos médicos sobre medicamentos ronda os 11 biliões de dólares por ano (...). Mesmo que o actual processo de promoção de fármacos tenha falhas, é difícil pensar numa alternativa praticável. Também era bom que todos os médicos lessem regularmente jornais médicos, mas não lêem»...
Assim, o Prof. Rubin pensa que se os regulamentos e os códigos de Ética tornarem a capacidade de comunicação da IF «mais difícil ou mais cara, o custo não será apenas suportado pelas companhias. A principal consequência será que muitos médicos aprenderão menos sobre medicamentos, o que se reflectirá negativamente na saúde dos doentes».
As sociedades confiaram a investigação, produção e comercialização de medicamentos e outras terapêuticas à IF, e esta não tardou a construir empórios cotados na bolsa. Ora, este é um contexto onde, como os últimos anos têm demonstrado amplamente, a perversidade está sempre pronta a saltar, porque a pressão dos accionistas, a exigirem lucros de forma cega e permanente, é tremenda. Mas se a Humanidade tem hoje mais tempo de vida e com melhor qualidade de vida, deve-o em grande medida, no que dos medicamentos depende, à IF — onde decerto não apenas se movimentam anjos. Como em lado algum, de resto.
O debate em curso, que é legítimo, necessário, mesmo urgente, tem revelado por todo o Mundo onde se trava com mais calor algumas posições sem esforço etiquetáveis de hipócritas, mal fundamentadas, até maldosas, em certos casos. Espera-se que de todos os lados acabe por prevalecer o bom senso e o compromisso com o progresso.
Sem lucros não há investigação, e sem investigação o futuro da Humanidade estará ameaçado. Será concebível um Mundo onde, subitamente, se abandone a busca de novas moléculas para tratar melhor ou curar qualquer das patologias que continuam a afligir os seres humanos? Ou estarão os cidadãos dispostos a financiar, através dos seus impostos, um ministério da Investigação para o qual trabalhem todos os investigadores em Biomedicina, dotado de um orçamento construído no pressuposto de que os custos do desenvolvimento de uma nova molécula rondam hoje os mil milhões de euros?
joao.oliveira@tempomedicina.com