No Público de hoje:
"Hospital de Santa Maria, 2006: a desumanização banalizada?
Clara Pracana
No meu caso, bastaram duas noites no SO de Santa Maria. E pertenço a uma classe privilegiada, sou psicoterapeuta, investigadora. Como é possível ser assim tão fácil retirar ao outro a qualidade de ser pensante? Negar-lhe a condição humana em tão curto espaço de tempo?
Acontece. Pode acontecer a qualquer um de nós. O que não devia acontecer a nenhum de nós, rico ou pobre, gordo ou magro, preto ou branco, saudável ou não, é o que passarei a relatar. Não está em causa a minha pessoa, mas a dignidade da pessoa humana. De todas as pessoas. E essa, valor que reputo fundamental, é mais fácil de se perder do que se pensa. É mesmo muito fácil. No meu caso, bastaram duas noites no SO de Santa Maria. E pertenço a uma classe privilegiada, sou psicoterapeuta, investigadora. Como é possível ser assim tão fácil retirar ao outro a qualidade de ser pensante? Negar-lhe por completo a condição de ser humano (que passa a ser apenas um bocado de carne) num tão curto espaço de tempo?
Tive o azar de, a 7 de Junho, ter um violento acidente de automóvel. Depois de horas de encarceramento, lá conseguiram extrair-me do monte de sucata em que o carro se transformara. Transportada para as urgências do Santa Maria, foram-me detectadas várias costelas partidas e três fracturas na bacia. Fui carregada para o SO.
Aqui entra em cena a personagem do dr. Zé Manel, como o designavam no SO. Desconheço o seu apelido, nem me interessa sabê-lo, não tencionando voltar a pôr os olhos em cima de tão repelente criatura. Mas neste caso o dr. Z. M. é mais que ele próprio uma criatura mal-educada, com impulsos omnipotentes e sádicos. Ele é o paradigma de todos os drs. Z. M., todos aqueles que pululam por Santa Maria como devem pulular por outros hospitais. Logo por azar, a minha cama no SO ficava mesmo em frente do local onde os médicos se reuniam durante a noite. Se por acaso as dores que eu tinha e os gritos do vizinho da cama ao lado me permitissem dormir, não conseguiria fazê-lo tal o nível de decibéis das risadas e da animada conversata entre os doutores (para não falar das luzes sempre ligadas). Ouvi falar de tudo, talvez até de mais: as questões laborais, os casos amorosos, as últimas anedotas, a questão das reformas, a nova legislação, etc. Na segunda noite que lá passei, um deles teve o seguinte desabafo: "Eh, pá, que chatice, hoje não há nada que fazer. Nem uma reanimaçãozinha!" (E pensar que pagamos nós a esta gente com os nossos impostos...)
Pois nessa noite dava-se justamente o caso de estar há duas horas a atentar chamar a atenção de alguém naquele SO. Apenas conseguia murmurar "por favor" e agitar o braço esquerdo, já que o direito pouco se movia. Que pretendia eu, pedaço de carne jacente numa cama? Apenas que me antecipassem por duas horas a ingestão do Omeprazole, já que o refluxo gastro-esofágico me estava a provocar uma tosse dolorosíssima, devido às costelas partidas. Levei duas horas até que alguém me ouvisse (e foi um enfermeiro), mas fiquei a saber muita coisa da vida dos médicos naquele hospital, dos drs. Z. M. e dos interesses que comandam aquelas vidas. E é aquilo o SO, onde os doentes são supostos estar sob observação...
Entretanto, ao fim de cerca de 24 horas no SO, a minha cama foi colocada no corredor para ser levada para a Ortopedia, segundo alguma alma caridosa me informou (certamente uma enfermeira ou enfermeiro, porque eram os únicos seres educados, assim como muitos dos auxiliares). Porque ali não se informam os doentes. Ali, tal como no livro de Job, não se explica nada, nem se dão razões para nada. A omnipotência dos senhores doutores, cuja má-educação me continua a intrigar, intrigaria certamente o próprio Job: mas terão de ser todos assim? E porquê? Será resultado de défices narcísicos a precisar de um engrandecimento à custa do esmagamento do outro, da sua redução a um objecto? Será uma questão de escola? De cumplicidades tecidas no dia-a-dia? Protecções corporativistas? Não sei. Mas acho que o fenómeno desta grosseria básica (e bárbara) devia ser investigado, porque diz respeito a todos nós, e todos nós pagamos (nos dois sentidos da palavra) por isso.
Certo é que a esperança de sair dali para a Ortopedia durou pouco. Passado algum tempo, a minha cama foi puxada novamente para o SO, e eu lá voltei para o meu lugarzinho, a cama nº 7.
Nessa manhã, o dr. Z. M. passeava-se com um seu acólito pelo SO. Personagem rubicunda, de fraca presença, ostentava para compensar um ar imperial, pairando acima dos apelos, gritos e soluços dos pedaços de carne que ali, como eu, se encontravam. Tendo ele entrado no meu cubículo, pretendi saber porque não tinha sido ainda levada para a enfermaria da Ortopedia, se essa tinha sido a opinião do médico da especialidade cardiotorácica (tal como ouvira da boca do próprio, o único médico educado que encontrei, além de uma médica espanhola). O que fui dizer! "Intromissão nas decisões do hospital", foi o que o dr. Z. M., do alto do seu poder, chamou à pretensão de querer saber acerca da minha saúde e do que me esperava. Eu argumentei, na fraca voz que as costelas partidas me permitiam, que me parecia legítimo inquirir acerca do meu estado de saúde. Irritado com os argumentos que fui expondo, o dr. Z. M. não deu resposta, foi-se embora.
Muitas horas depois, de novo me surge o dr. Z. M., sempre com o seu acólito. Mandou-o tirar-me sangue. Eu, que já estava mais esburacada que um passador, perguntei em tom cordato se as três seringas de sangue que tinha tirado há duas horas não serviriam para as análises em causa. Resposta irada do dr. Z. M.: "Mas por que é que me disse que não lhe tinham tirado sangue?" Eu, que não me lembrava nada de ter dito tal coisa, respondi que não me lembrava de o ter dito, que talvez tivesse feito alguma confusão... "Ah!", exclamou o dr. Z. M. triunfante, com os pequenos olhinhos brilhando de alegria. "Pooooois!" E naquele "pois" estava todo triunfo dele sobre o ser ainda pensante que eu tinha sido antes. Agora, eu já nem sabia pensar. Era uma tonta, só fazia confusões, já nem sabia o que dizia, tinha perdido por completo a capacidade de ser pensante, ou seja, deixara de ser um ser racional, uma pessoa. A partir desse momento, perdi o direito à palavra. O dr. Z. M. tornou-se omnipotente.
Hannah Arendt escreveu muito, e bem, sobre a banalização do mal, sobre como medíocres homenzinhos como Eichmann se tornam capazes de assassinar milhões. E como é fácil as pessoas ditas "de bem", virarem a cara para o lado, limitarem-se a não ver. Primo Levi, que sobreviveu a Auschwitz, relata em tom desapaixonado o que passou nesse campo. Devíamos ler e reler a obra prima que é Se isto É Um Homem. E aprender como em poucos dias, ou mesmo horas, é fácil perder a qualidade de pessoa, quando se está entre seres para quem o triunfo narcísico passa pelo aniquilamento do outro. É sobre gente desta, os medíocres drs. Z. M. deste mundo, que se torna possível erguer os abusos à pessoa humana, instalar os totalitarismos de várias caras, instituir o processo de aniquilação do outro, a morte em vida. Quando começaremos a ser capazes de dizer não ao poder destrutivo do outro sobre nós? Quando seremos capazes de construir mecanismos civilizacionais que nos protejam de situações como estas? Quando seremos capazes de pensar, pensar a sério, nos mecanismos e nas motivações que estão por detrás dos nossos actos? Investigadora
P.S. - Nesse mesmo dia decidir fazer tudo para ser transferida para outra unidade hospitalar. Assinei um termo de responsabilidade, já que a minha saúde corria considerável perigo na transferência e fugi do SO. Recuperei o direito à palavra, mas fiquei com o peso da culpa. Quantos podem fazer o mesmo que eu? Neste momento, entre quantos seres desapossados da sua dignidade, passeará o dr. Z. M. a sua mediocridade destrutiva e maligna? Ele, e todos os outros drs. Z. M., seus acólitos. E nós, quando acordaremos? Quando usaremos o direito à palavra? O direito à indignação? Ah, e não me venham dizer que nos meios hospitalares é quase sempre assim, porque são meios onde a morte está sempre presente. Essa é mais uma razão para não tolerarmos as grosserias e a violência de gente como esta sobre nós."