Francisco José Viegas: Em Que Mundo Vive?
Crónica de Francisco José Viegas no Jornal de Notícias, dia 29, intitulada "O governo ou o caos":
Uma das tentações mais medíocres do homem público consiste em queixar-se da imprensa. Acontece a todos e a lista de queixosos é vasta, desacreditada e, vá lá, está cheia de gente inutilizada pela política.
O senhor ministro da Saúde foi recentemente à televisão e, a meio, sucumbiu à tentação de falar dos seus inimigos ocultos ou com identidade duvidosa. Diante das câmaras da SIC Notícias, o senhor ministro da Saúde acusou os jornalistas em geral, bem como as televisões e os jornais, de receberem dinheiro da indústria farmacêutica a fim de publicarem ou difundirem as instruções, as notícias, as indicações e a opinião da mesma indústria. Eu, que li "O Fiel Jardineiro", de John Le Carré, muito antes do senhor Ministro, e que na extinta "Grande Reportagem" acompanhei as investigações em redor do "caso Pequito", sucumbi à revelação finalmente, alguém com elevadas responsabilidades políticas, como é o caso do senhor ministro da Saúde, permitia-se o luxo de fazer acusações na televisão. Não acusações tão vagas como mencionar a existência de uma conspiração, de uma rede de acordos obscuros, de uma máfia dos medicamentos e dos negócios hospitalares. Não. O senhor ministro da Saúde, com a sua habitual placidez, indicava dois inimigos brutais: os jornalistas e a indústria farmacêutica. Naturalmente, havia provas, havia dados, havia factos, havia demonstração clara de uma conspiração, de uma negociata e de uma barreira (até aí invisível, portanto) contra o sistema de saúde português.
Desilusão. Analisadas as declarações, bem vistas as frases, tratava-se apenas de uma acusação tão vaga como a de Santana Lopes contra os árbitros de Canal Caveira. O que diz quase tudo sobre a matéria.
Procurei no site do sindicato dos jornalistas uma reacção contra as declarações do ministro; nada. Visitei os blogues mais atentos ao assunto; nada. Procurei no site da digníssima Entidade Reguladora da Comunicação Social, tão sempre vigilante; nada. Um cidadão (embora ministro) faz acusações tão fortes e definitivas, acusando jornalistas de receberem dinheiro e a indústria de o fornecer com abundância - e ninguém liga ao assunto. Que desperdício.
No dia seguinte, porém, um assessor do ministro aparece para deslocar a acusação afinal, a indústria não paga aos jornalistas e sim às agências de comunicação que, a seu bel-prazer, publicam e difundem essas notícias junto da opinião pública. Sinceramente, é pior a emenda do que a asneira anterior: como a entidade "os jornalistas" é demasiado difusa, a assessoria do senhor ministro encontrou as agências de comunicação (às quais o governo e o ministério da Saúde recorrem abundantemente) como alvo, e as empresas de comunicação social como parceiros de mais "uma cabala".
Não compreendo a sua admiração (posso compreender a indignação!) perante aquilo que já é um lugar comum sobre a força, o poder e o dinheiro:
"A indústria não paga [SÓ] aos jornalistas e (sim) às agências de comunicação que, a seu bel-prazer, publicam e difundem essas notícias junto da opinião pública".
Paga a médicos, enfermeiros, farmacêuticos, associações de doentes (agora é a grande moda!), sociedades científicas, suplementos em jornais generalistas de referência, NOTÍCIAS, ENTREVISTAS, etc.
E não compra só a prescrição de médicos e enfermeiros (sim, também de enfermeiros!) ou a substituição de fârmacos nas farmácias:
- Já influencia estudos clínicos,
manobra guidelines,
compra artigos em revistas credíveis,
influencia até (há quem diga!) a poderosa FDA (Food and Drug Administracion),
inventa doenças para as quais tem o remédio certo,
etc, etc, etc, etc, etc, etc, etc, etc, etc, etc, etc, etc.
O grande problema é que a incansável avidez pelo lucro, também faz avançar a investigação científica, a descoberta de novos medicamentos, o aperfeiçoamento de outros.
Não tenhamos dúvidas. Se a Indústria não existisse, não seriam os Governos a aprofundar a investigação sobre o cancro, a sida, as doenças neurológicas, o Alzheimer, e por aí fora,
Enfim. É o capitalismo. O mercado. As duas faces da moeda...