quinta-feira, março 03, 2005

"É Cada Vez Mais Arriscado Ser Médico"

Extractos da conferência do Prof. João Lobo Antunes na Fundação Gulbenkian, intitulada "Para Onde Foi O Dr. João Semana?" publicados no jornal Tempo Medicina On Line.

"Os médicos da actualidade sentem «um desconforto» resultante do «afastamento» da prática diária em relação aos conceitos de humanidade tradicionalmente associadas à Medicina.
Esta e outras ideias foram defendidas pelo Prof. João Lobo Antunes que abriu o ciclo «Ao encontro da Medicina», com a conferência «Para onde foi o Dr. João Semana?». «É cada vez mais arriscado ser médico» por «razões próprias do saber médico, tão vasto e tão complexo, mas, também, por razões estranhas, extrínsecas à profissão».
Foi deste modo que o Prof. João Lobo Antunes resumiu o «desconforto» que muitos dos médicos de hoje sentem face ao «afastamento» da sua prática diária em relação às ideias de Humanidade tradicionalmente associadas à Medicina. Para este neurocirurgião e investigador, é preciso «dar alma» à profissão, formando médicos que sejam «homens e mulheres completos», capazes de atender ao «doente completo».

Deste modo, assinalou, cumprir-se-á o papel de «humanidade do médico, definida na proximidade ao outro», ou, nas palavras do Prof. Miller Guerra, que o conferencista citou chamando de «Mestre», o encontro do doente com o seu médico será o da «confiança que procura livremente uma consciência».

No encontro, promovido pela Fundação Gulbenkian, em conjunto com a Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa e a Fundação para a Ciência e Tecnologia e que teve lugar no passado dia 22, o Prof. João Lobo Antunes começou por recordar quem foi o Dr. João Semana, o médico «céptico», para quem a doença e a saúde, «na prática», era «coisa que se reduzia a muito pouco, mais gástrica, menos gástrica».

Trabalhando «de sol a sol», todos os dias, de onde retirou o apelido de «Semana», este médico, conhecido de todos através da obra de Júlio Dinis, partilhava a sua clientela «com charlatães», próprios da época, mas, também, com um outro médico, «bondoso, franco, sentencioso», o Dr. João José da Silveira. «Nascido em 1813, formado na escola médica do Porto em 1841, com uma dissertação sobre fístulas do ânus», este contemporâneo do Dr. João Semana «trabalhou em Ovar», e, «quando aconteceu a epidemia de febre amarela na região, foi dos poucos médicos que não abandonou o seu posto». Tal como o seu colega, o Dr. João Silveira era «céptico em relação aos progressos da Medicina moderna, do seu tempo», o que sintetizava numa expressão, «bem sei, bem sei, vocês curam à moderna, mas morre-se à antiga…». Desta época e destes médicos, resultou o que hoje se define como o Médico de Família, ou Clínico Geral, a quem o Prof. João Lobo Antunes chamou de «pediatras de adultos».

Médicos que trabalham num Mundo e numa sociedade em que a Medicina se transforma, perdendo em proximidade ao doente, enquanto ganham em conhecimento da doença. Informação e conhecimento «A cientização da Medicina teve uma consequência um pouco perversa, que foi atrofiar aquilo que chamamos o carácter providencial da Medicina, o seu exercício como ciência do indivíduo, e o seu papel pastoral», explicou o conferencista, citando um poema de Elliot: «Onde está a vida que perdemos vivendo/Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento/Onde está o conhecimento que perdemos na informação».

Sublinhando que «informação, conhecimento e sabedoria são coisas diferentes», o Prof. João Lobo Antunes enumerou entre as causas que afastam os médicos do homem «a convicção soberba de que Ciência é capaz de aliviar todo o sofrimento». Segundo frisou, a partir dessa convicção, «não se pode pensar que aquilo que nós temos, a melhoria das taxas de mortalidade, da morbilidade, se deve apenas à Ciência médica. De facto, a melhoria das condições de vida, de nutrição, de higiene, foram igualmente decisivas», tal como a «evolução de conhecimentos», com a qual os médicos ganharam «uma base sólida», essencial para fundamentar «aquilo que fazemos».

Com os progressos evidentes permitidos pela Ciência, recordou este médico, «triunfantes e triunfais, nós declaramos o fim das doenças infecciosas… até que surgiu a SIDA», e enquanto se «mantém sem solução grande parte da patologia oncológica, ou como nos escapa, também, ainda muito, sobre as doenças cerebrovasculares». Entretanto, salientou, «o padrão das doenças alterou-se», e «predominam as doenças crónicas, incapacitantes», e os médicos vêem-se na situação de terem que lidar com «a preocupação» do doente, mais do que com a sua «doença», e têm que «enfrentar a subversão dos gestores autoritários» e «os clientes recalcitrantes, litigiosos», numa «prática diária» que já não resolve «problemas», mas «dificuldades».

Neste novo contexto da prática da Medicina, assiste-se à «pujança das Medicinas alternativas», as quais, frisou este neurocientista, de facto, «são alternativas, Medicina é que não».

Tudo isto enquanto o acto médico se fragmenta, com «cada vez mais especialistas», num contexto em que «os doentes têm muitos especialistas, mas não têm médico». Na procura de respostas que contribuam para aproximar, de novo, doente e médico, o Prof. João Lobo Antunes defendeu a importância de se entender que «a arte médica é aquilo que capta o contexto social do exercício da profissão». Ou seja, «que cuida da humanização da Medicina», e que promove o «agir pelo sofrimento do outro». Algo que, reconheceu, é, cada vez, mais difícil quando se perde a «assimetria» de conhecimento, e o doente começa a saber mais sobre a doença, perdendo-se, por consequência, «a essência do paternalismo», próprio de uma relação em que, entre médico e doente, «nós sabíamos mais do que eles»."


"Doentes e médicos mais distantes
Decorridos quase 40 anos desde o momento e que as «caixas de previdência» começaram a alterar a relação entre médicos e doentes, criando novas barreiras na relação entre estes, surgiram as seguradoras, que começam a fazer o mesmo. Foi deste modo que o Prof. Alexandre Sousa Pinto, que comentou a conferência do Prof. João Lobo Antunes, explicou porque razão doentes e médicos estão hoje mais distantes entre si. «Quando o Estado começou a gerir a Medicina, criou as caixas de previdência», passando «a burocratizar a nossa vida», lembrou este professor da Faculdade de Medicina do Porto, acrescentando que foi nessa altura que «as classes baixas deixaram de ver o João Semana», algo que, agora, começa a suceder com as classes média e alta, que «vão deixar de ver» este perfil de médico, passando a ter «consultas de 10 minutos», em que o médico é forçado «a olhar para certos aspectos» além do doente. Para este clínico geral, ou generalista, que afirma gostar «mais desse termo», o «caminho para evitar que o afastamento entre médico e doente se acentue» passa pelo reforço da formação dos médicos em ciências humanas, como a sociologia médica, a antropologia e a economia, para que «se atinjam todos os aspectos que hoje são necessários ao exercício» da profissão
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