segunda-feira, abril 05, 2004

Senhor Doutor Quero Fazer Um Check-up A Tudo, Com Análises Gerais E Um Taco Ao Corpo Todo

Publicou o Expresso um dossiê sobre Medicina Familiar, com vários artigos interessantes sobre as especificidades desta especialidade, descritas na óptica dos seus intervenientes, pois todos os artigos são assinados por diversos médicos de família.

De todos, o que me despertou mais atenção foi o do médico Carlos Martins, sobre as actividades preventivas.
São desmistificados alguns conceitos e apresentada uma tabela genérica sobre as actividades preventivas relevantes e baseadas na evidência. Não foram publicadas referências sobre as afirmações produzidas, mas num artigo para um público generalista talvez fosse desnecessário.

Tratando-se de um dossiê, presume-se que foi elaborado a pedido e pago pela APMCG.

ISTO É QUE ME PREOCUPA.

Para se dizerem verdades, politicamente correctas e por vezes impopulares, particularmente para os intelectuais que não as compreendem, contrariando muitas vezes páginas e páginas de publicidade encapotada, é necessário pagar.

Para se afirmar que não são necessários rastreios de base populacional para o cancro da próstata é necessário pagar, caso contrário, teríamos a ira dos urologistas.

Para se afimar que bastam alguns simples procedimentos (medir a pressão arterial, determinar a glicémia e o colesterol, pesar e fazer uma simples pergunta) para se saber se há ou não risco cardiovascular, tem que se pagar, caso contrário todos os cardiologistas se levantariam contra a comunicação social, especialmente os que têm consultório particular.

Outras afirmações se poderiam fazer e outras iras se levantariam, particularmente de quem "com o medo do cancro" lucraria.

Algumas frases para ler e reler:

"Seria óptimo se traduzisse uma vontade real das pessoas mudarem os seus hábitos para estilos de vida mais saudáveis e de romperem com costumes e rotinas que implicam um risco elevado para a saúde. Contudo, aquilo que se constata na prática é precisamente o contrário…"

"... pretendem frequentemente efectuar uma bateria de análises e exames de diagnóstico para poderem continuar a cometer os seus erros alimentares, a consumir bebidas alcoólicas em excesso e o seu tabaco, entre outros".

"...desconhecem que a medicina actual, não obstante o facto de toda a evolução das últimas décadas, não dispõe de um conjunto de exames que possam dar ao cidadão uma garantia semelhante à dos electrodomésticos: “após estes exames, o senhor terá uma garantia de vida saudável por dois anos.” "

"Quando um fumador se dirige ao seu médico e lhe pede uma radiografia pulmonar para ver como estão os seus pulmões, pode ver essa sua pretensão justamente recusada. E porquê? Porque os vários estudos de investigação que foram efectuados para esclarecer se se deve usar a radiografia pulmonar como método de rastreio do cancro do pulmão não demonstraram que os benefícios superem os prejuízos. E cada vez que alguém se submete a uma radiografia está a submeter-se a uma dose substancial de radiações que, por sua vez, também têm efeitos cancerígenos."

"Um outro exemplo é a mamografia quando utilizada para rastreio do cancro da mama na mulher sem queixas, sem antecedentes pessoais ou sem antecedentes desta doença na sua família. ... uso deste exame só se revela eficaz ou seja, só diminui a mortalidade provocada por aquela doença quando usado de dois em dois anos nas mulheres com mais de 50 anos. Nas mulheres com idades entre os 40 aos
50 anos, este método de rastreio deve ser muito bem ponderado pois os benefícios não superam os prejuízos. .../... Os prejuízos do uso indevido deste método de rastreio passam pela exposição desnecessária às radiações, pelo elevado número de falsos positivos, pelas biopsias desnecessárias que terão que ser efectuadas e também pela desnecessária ansiedade e incómodo que cria na mulher que a ele se submete."


"Também tem sido frequente a solicitação de marcadores tumorais como forma das pessoas se assegurarem de que não têm cancro. Até agora, com base na evidência científica, nenhum marcador tumoral se revelou eficaz como método de rastreio de qualquer cancro. Nem mesmo o tão popularizado PSA como forma de rastreio do cancro da próstata, nos homens que não apresentem qualquer queixa prostática. Poderão os excelentíssimos leitores questionar-se sobre os malefícios de fazer uma simples análise ao sangue, como é o caso do PSA. Deixando de lado a questão dos custos desnecessários de um rastreio universal aos homens assintomáticos acima dos 50 anos, os malefícios estão sobretudo relacionados com o elevado número de falsos positivos e com o desconforto de outros exames desnecessários como as respectivas biopsias ou ecografias transrectais."

Pois então parabéns à APMCG, ao seu presidente e ao médico Carlos Martins, que investiram na qualidade da informação, contra "os dislates que se ouvem e lêem, por vezes inconscientes, ... para que os jornalistas (e outros intelectuais!) sejam o veículo para os 'media' não fomentarem a iliteracia científica" o lema deste simples blog.

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