segunda-feira, dezembro 22, 2003

Confirmo Este Artigo

No Jornal de Notícias de 22/12/2003, Eduarda Ferreira, jornalista, tem a coragem de descrever estas situações:


"Como olhar para o lado


A esta hora, famílias preparam já as suas festas, assegurando para os velhos uma cama de hospital



Agosto e final de Dezembro são épocas de maior crise nos hospitais dos grandes centros. Claro que há médicos, enfermeiros e pessoal auxiliar de férias, não fosse já problemático o seu déficite ao longo do ano. Claro que as maleitas crónicas atingem um pico
de gravidade com o calor e com o frio.
Mas já não é tão claro outro fenómeno: há famílias que depositam aí os seus velhos usando artimanhas diversas ou que prolongam internamentos, não respondendo às informações de "alta" enviadas pelos serviços. Até que acabem as férias ou as festas,pelo menos.
Postas as coisas assim, tudo assume contornos de crueldade. Estaremos logo de unhas afiadas, prontos a criticar o expediente. Teremos logo à mão um sem número de apetrechos moralistas que afastam de nós a suspeita de alguma vez sermos capazes de tanto e tãopouco, pobres hipócritas.
Mas, já que somos tão generosos com a vida dos outros, experimentemos amontoar a família toda em três gerações e duas assoalhadas com marquise, mais humidade. Experimentemos, nessas condições insalubres e promíscuas (talvez com desemprego à mistura), uma daquelas senilidades que exigem cuidados permamentes até ao desgaste.
Imaginemos as crianças a partilhar espaços, tempo e despesas com um avô ou uma avó, cuja dependência deixa de rastos todo o agregado familiar. São raros e caros os lares que acolhem idosos em condições dignas. Os cuidados domiciliários ainda não constituem
uma verdadeira rede. O nível mais comum das pensões de reforma assegura apenas pobreza envergonhada.
Em França, os resultados do trabalho num feriado em cada ano vão ser usados para, ao longo da próxima década, dotar o país de equipamentos e serviços capazes de acorrer ao envelhecimento da população e às condições cada vez mais solitárias desse envelhecimento.
As lições do último Verão, com o calor a matar milhares de idosos no isolamento em que foram deixados pelas famílias ou nem por elas, impuseram à sociedade francesa um compromisso a que trabalhadores e empresários não conseguiram eximir-se, mesmo recalcitrando um pouco. No fundo, diminui em um o número de feriados, mas ninguém arrecada o lucro. Vai tudo para lares e apoio domiciliário que, em França, não estão propriamente no ponto incipiente em que os temos ainda.
Fosse por cá e havia de ser bonito. Se mais ninguém se locupletasse antes com o dinheiro, haveria sempre contas tortas, por onde o Estado, pouco fiável nestas coisas, afunilaria as benesses aos verdadeiros destinatários. Mais que certo. De resto, sempre que vem à baila a diminuição dos feriados, a generosa ideia reverte sempre e só a favor das empresas e, claro está, de um famigerado aumento da produtividade. Mas, que se saiba, como diria o outro, "não é por se fazer cera mais um dia que se cria mais-valia".
Por isso, e já que o Mundo não é perfeito, mais vale conformarmo-nos com o facto de Lisboa e arredores não contarem sequer com um hospital de retaguarda nem com uma rede de serviços domiciliários.
De vez em quando, há rompantes governamentais a prometer isso. A Santa Casa também já propalou em tempos a intenção, que ficou por aí.
Portanto, os hospitais que aguentem o embate social do envelhecimento demográfico. E nós cá estaremos para nos indignarmos cinicamente com as famílias que esquecem os seus velhos nos estabelecimentos de saúde nas festividades ou férias
".

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