" (...)
O caso que agora publicamos é o de um médico já com 30 anos de prática clínica numa pequena cidade, de quem nunca ninguém teve motivo de queixa, que, para além de exercer a sua clínica, trabalhava gratuitamente num clube, fazendo medicina desportiva.
Esse clínico fazia os exames médicos a todos os cidadãos que pretendessem praticar qualquer actividade desportiva nessa agremiação. Era uma actividade calma, sem incidentes, cujos utentes eram, na sua maioria, jovens, saudáveis e bem-dispostos.
Até que um belo dia, por entre os jovens aspirantes a atletas, apareceu um adolescente de 14 anos, cuja família o acompanhava e aguardava fora das instalações do clube, menino de família, pretendente a desportista, etc., etc. Foi este personagem que veio, nesse dia, alterar por completo a pacatez do centro médico daquele pequeno clube.
O rapazola era dado a graçolas, atrevido, gostava de dar nas vistas, decidiu divertir-se à custa do Médico fazendo o seu show junto dos colegas que ali estavam.
O gozo do miúdo começou com as questões que o médico lhe punha sobre os seus antecedentes pessoais, familiares, perguntas sobre a altura, sobre o peso, se tinha tido doenças, o costume, mas... a inocente criança a tudo, com um ar trocista, respondia que não sabia! O médico ainda foi mantendo a calma, mas decidiu pesar o putativo atleta, mandando-o para a balança.
- Balança? O que é uma balança?
Bem, e esta rábula foi prosseguindo, sempre neste clima, até que o Médico disse:
- Basta! Não faço exame a este malcriado! Sai! Rua!
Então o garoto saiu assustado e, passados momentos, surge a mãe da criatura, que invade o gabinete e, vai daí: - Quero falar com o médico e quero que ele me explique o que se passou!
Resposta do clínico:
- Mas eu não quero falar com a Senhora!
Entretanto o menino, por trás da mãe continuava a gozar, a fazer gestos obscenos, alternando com gestos ameaçadores evocando murros! E, pior que tudo, terminou esse espectáculo de mímica com um gesto muito feio, vulgar nas contendas futebolísticas, executado, e vou citar o processo, " (...) com os três dedos centrais da mão"!!!
O médico... era de prever, não era feito de ferro e, olvidando todos os códigos deontológicos, respondeu do mesmo modo, fazendo a velha e conhecida figura digital, acompanhada da elegante frase; "olha, toma para ti!"
Eloquente!
A Mãe do menino, carregadinha de testemunhas daquele dignificante diálogo gestual, decidiu fazer queixa à Ordem dos Médicos. Assim, foi aberto processo de inquérito, nomeado vogal relator, notificado o participado para que, querendo, dizer o que tivesse por conveniente no prazo de quinze dias.
O médico acusado, assim fez, respondeu, confirmando em absoluto a matéria da queixa, tecendo ainda considerações sobre o insólito da situação que, de facto, o tinha alterado completamente, a ponto de o ter descontrolado.
O despacho final do Conselho Disciplinar Regional reza então, e passamos a citar" (...) Resulta dos autos, o próprio arguido o confessou, que efectivamente praticou o facto de que vem acusado.
O comportamento do arguido constitui uma clara violação do disposto no artigo 26° do Código Deontológico publicado na Revista da Ordem dos Médicos n° 3/85, na medida em que se tratou de uma atitude cujo único escopo foi ofender terceiros – neste caso o paciente.
Alega o arguido que tal acto foi uma consequência das provocações constantes de que foi alvo. (...) Atento o facto praticado, o facto de o participado ter confessado a sua prática, contribuindo dessa forma decisivamente para a descoberta da verdade, e o facto de não ter qualquer registo de infracções prévio, entende-se ser adequada a aplicação da pena de advertência."
Não poderia ser de outra maneira, a conduta do Médico não foi, de facto correcta, violou o Código Deontológico quando se descontrolou a este ponto no exercício das suas funções. Ou seja: por vezes são necessários nervos de aço!"
Um caso de linguagem gestual inapropriada!, Rui Pato (Presidente do Conselho Disciplinar da Secção Regional do Sul da Ordem dos Médicos), in Revista Ordem dos Médicos, 2003 Novembro, Ano 19 (40), p 22.
Título e sublinhados meus.
Quem teve a paciência de ler o texto até ao fim de certeza que desculpará a atitude do clínico.
As paredes de um consultório, tanto podem esconder as más atitudes de um médico, como as atitudes irreflectidas, inconscientes ou inocentes de um paciente.
Mas ...
Em todos os casos o médico, de acordo com o seu Código Deontológico, tem que ser correcto. Tem que compreender as atitudes do utente no contexto em que são praticadas.
No contexto de um acto médico! E as atitudes inapropriadas de um doente podem ser um sintoma de uma doença orgânica (demência), psíquica (distimia) ou social (podem escolher o nome...).
Este médico, com uma atitude irreflectida, tem a sua folha de serviços manchada e que num outro futuro poderá funcionar como factor agravante.