quarta-feira, outubro 29, 2003

Histórias do Nosso Povo Que as Televisões Escondem

Ou Mais Um Dia de Trabalho Com o Povo
Ou Histórias Que O (Nos) Envergonham

– 45 – Masculino: (antes de começar) amigo dá informes de amigo internado;

– 30 – Feminino: dor no pescoço e perfumadíssima, talvez a ida ao banco seja a sua única reunião social (no fim, por favor pode pôr aí uma caixa de zolpidem para a minha mãe?);

– 77 – Masculino: Early Morning Hours – não resistiu a um velório e ao funeral, dor no peito mantida, segue para a cardiologia;

– 78 e 77 – Masculino e feminino: dois doentes de lares de idosos trazidos por jovens funcionárias.

– 77 – Masculino: mais um lar de idosos em apuros – complicação pós-cirurgia abdominal, segue para a cirurgia;

– 65 – Masculino: má interpretação da terapêutica anti-diabética, analfabeto;

– 63 – Feminino: queda de cabelo (olho para o relógio: são exactamente 13 horas e vinte), educadamente pergunto: minha senhora, queixar-se de queda de cabelo, aqui e às 13h20? Resposta: porque o meu marido tinha que fazer de tarde. É perigoso discutir com estes doentes. Tome lá este champô e vá ao seu médico, se faz o favor.

– 95 – Feminino: agitação, sons imperceptíveis, grunhidos, gemidos, psicose senil, acamada, suja, urinada, escariada, abandonada dentro da família. Quando mostram a vida dos 113 anos, esquecem-se de muitos anos sem vida. Estes casos não convêm expor nos monitores das nossas televisões. Expor doentes, só com casas com piscina, da nossa nova burguesia, ou quando cheira a negligência médica ou do Estado. Quando a negligência é das famílias, as televisões escondem-se.

– 16 – Feminino: picadíssima por insectos durante a noite. Mas viveremos em África? Não. Vivemos em Portugal, mas há quem sobreviva e não viva sem condições.

– 15/16 – 4 Alunas teen: sintomas mínimos, da mesma escola, da mesma turma, para a declaraçãozita. Sempre é melhor que ir à escola.

– 34 – Masculino: corpo estranho no olho, há mais de 24 h. É um caso de auto-negligência. Segue para a oftalmologia.

– 90 – Masculino: queda da cama há 8 dias. Vive sozinho com a esposa de 89. Os filhos esqueceram-se dos pais. Traço ligeiro de fractura do úmero. Ortopedia. Repouso em casa com carta para o médico de família.

– 67 – Masculino: Depressão por cancro da laringe. Tratado, estabilizado, curado (?). Mas a depressão persiste. Foi mais fácil tratar o cancro que a depressão. A vida é assim. Mas se não tivesse fumado a vida inteira, nem uma, nem a outra teriam aparecido.

– 24 – Feminino: Oksana (nome fictício), emigrante de leste. Educada e simpática. ITU.

– 79 – Masculino: internado em lar. Acamado. Diz a acompanhante muito agitada, que está engasgado. Não está. Está com uma crise aguda de ansiedade.

– 86 – Feminino: erisipela.

– 91– Feminino: diz o familiar, espumou pela boca. Está em coma. AVC.

– 52 – Masculino: pai de médico. Segue para a dermatologia. (Pior é quando o filho está doente e o pai é médico. Por vezes é a doença “filho de médico”).

– 40 e 52 – dois elementos do nosso lumpen: finalmente. DST, já com resultado de análise na mão. Também há lugar para eles. Portugal é belo.

– 76 – Feminino: reacção aguda ao stress pelo internamento do marido das Early Morning Hours, na cardiologia.

Metade da lista. Os casos restantes perderam-se da memória.

(Ficção a partir da realidade observada. Tudo inventado. Nada disto existiu.)

Eu não existo! Eu sou ficção.

Sem comentários: