É Impossível Trabalhar Assim !
in Tempo Medicina, de 2007.01.08
Artigo do Prof. José Manuel Silva*
Em meu nome pessoal e no dos médicos, reclamo das condições em que
somos obrigados a trabalhar e declino quaisquer responsabilidades
pelos erros que possam ser cometidos em situações de sobrecarga nos
serviços de urgência de qualquer instituição de saúde
Excluindo os cada vez mais raros dias de relativa acalmia, amiúde a
procura da Urgência dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC)
ultrapassa amplamente a sua capacidade de resposta com eficiência.
No espaço central da Urgência, que foi dimensionado para 17 macas, é
frequente estar o dobro, o triplo, ou mais, de doentes!
Como especialista em Medicina Interna, estive de serviço à Urgência
dos HUC no passado dia 26 de Dezembro, das 9 às 21 horas. Nesse dia,
das zero às 24 horas, 604 doentes recorreram à Urgência (incluindo a
maternidade)! Na Urgência do Bloco Central, durante o dia, foram
admitidos quase 50 doentes por hora! Um verdadeiro mar de gente, que
provocou atrasos inaceitáveis, logo para a realização da primeira
triagem, e muitas horas de espera para os doentes menos urgentes.
Não é possível responder com atenção, humanidade, acuidade e
qualidade a tantos doentes, com as mais variadas queixas, patologias
e necessidades. O espaço físico não comporta esta quantidade e os
recursos humanos e técnicos, sobretudo os primeiros, são claramente
insuficientes nas horas de maior sufoco.
Em dias de maior enchente não há condições para observar os doentes,
nem macas suficientes para os deitar! Interrogamos um doente e estão
vários a escutar a conversa! Observamos outro doente e somos
acompanhados pelo olhar atento de uns quantos! Queremos auscultar um
coração mas o ruído de fundo parece o de uma discoteca! Necessitamos
de medir a tensão arterial e temos de ir, em verdadeira gincana
entre cadeiras e macas, buscar um aparelho que, muitas vezes, existe
em número insuficiente! Palpamos abdómens com doentes sentados
porque não há um local apropriado para os deitar! Queremos
concentrar-nos nos problemas de um doente e está outro a clamar para
que o despachemos! É necessária uma glicemia capilar mas, no meio da
confusão, já ninguém sabe onde está a máquina! É importante
administrar um medicamento ou colher sangue para análises, mas os
enfermeiros estão todos sobreocupados! É preciso transportar um
doente à ecografia, mas não há auxiliares disponíveis! Chega um
doente grave e está outro a gritar por um urinol! Os telefones tocam
por informações (por vezes, sobre o mesmo doente, são inúmeros
telefonemas!) ao mesmo tempo que os doentes (os que falam) solicitam
assistência! Tão depressa um doente está em risco de aspirar um
vómito quanto é necessário acorrer a um doente desorientado à beira
de se atirar da maca abaixo! Os frascos de soro de 100 cc esgotaram,
pelo que é necessário desperdiçar mais tempo a preparar diluições
com frascos de 500 cc! Etc., etc., etc...
Carta ao director clínico
Em Agosto de 2006 escrevi ao director clínico dos HUC uma carta, da
qual transcrevo o seguinte excerto: "O dia 22 de Agosto foi um dia
de enorme afluência de doentes à Urgência dos HUC, o que implicou um
trabalho profundamente absorvente e desgastante. O mal desenhado
espaço da Urgência (para o tipo de urgência hospitalar que ocorre em
Portugal) mais parecia uma feira, com ruído, confusão, gritos,
ordens, maus cheiros, falta de privacidade, calor, chamamentos,
lamentos, doentes em terceira fila, stress, pessoal subdimensionado,
etc. Os exageros da triagem de Manchester e os conselhos do ministro
da Saúde para que os doentes recorram às urgências hospitalares
vieram piorar o frágil desequilíbrio anterior. Como dizia um colega
ortopedista, quando sentia a agitação no seu sector da Urgência como
demasiada vinha apreciar a babilónia da sala de Medicina, o que lhe
permitia regressar mais animado e reconfortado à Ortopedia".
É completamente impossível trabalhar com qualidade desta maneira.
Para bem dos doentes, como profissionais de saúde tentamos cumprir a
nossa obrigação o melhor que podemos e sabemos, mas, como um dos
porta-vozes dos médicos, não posso deixar de denunciar que, ao
sermos compelidos a trabalhar nestas condições, seguramente que não
podemos evitar alguns erros que, de forma alguma, podem vir a ser
imputados à responsabilidade médica.
Denunciar nas instâncias apropriadas
É no cumprimento do parecer do Conselho Nacional do Exercício
Técnico de Medicina, da Ordem dos Médicos, sobre Recursos Humanos no
Serviço de Urgência, que escrevo estas linhas. Efectivamente,
segundo esse parecer, «os médicos devem denunciar, nas instâncias
apropriadas, a falta de recursos técnicos e/ou humanos para o
exercício da sua actividade com dignidade e segurança para os seus
doentes, não poderão, no entanto, declinar responsabilidades do que
ocorrer durante este exercício de actividade, em nome das ditas
insuficiências. Porém, na Constituição da República, no ponto 2 do
art.º 271.º, afirma-se: "É excluída a responsabilidade do
funcionário ou agente que actue no cumprimento de ordens ou
instruções emanadas de legítimo superior hierárquico e em matéria de
serviço, se previamente delas tiver reclamado ou tiver exigido a sua
transmissão ou confirmação por escrito"».
Infelizmente, os problemas que aponto à urgência dos HUC, apenas
porque os vivo intensamente cada vez que estou de serviço, são
extensíveis a muitos outros hospitais, senão a todos eles. Durante o
mesmo período, 540 doentes recorreram ao Serviço de Urgência do
Hospital de Aveiro, um hospital com muito menos recursos e que está
a rebentar de problemas de gestão! No dia 1 de Janeiro a Urgência do
Santa Maria foi um caos total, conforme vem referenciado na
comunicação social. Não é possível continuar assim!
Declinar responsabilidades
Por tudo isto, em meu nome pessoal e em nome dos médicos, ao abrigo
do art.º 271.º da Constituição, venho reclamar das condições em que
somos obrigados a trabalhar e declinar quaisquer responsabilidades
pelos erros que possam ser cometidos em situações de sobrecarga de
doentes nos serviços de Urgência de qualquer instituição de saúde.
Quem fecha serviços de atendimento permanente nos centros de saúde
sem alternativas efectivas, quem pretende encerrar serviços de
Urgência sem uma reforma profunda do sistema de Saúde, quem
desorganiza serviços de Urgência com a contratação de empresas de
mão-de-obra médica desligada da respectiva instituição, quem não
cuida de criar mecanismos de assistência aos idosos que dispensem o
recurso sistemático à Urgência hospitalar, quem não investe a sério
em verdadeiros cuidados paliativos, quem se preocupa mais com o
orçamento do que com os doentes, quem não tem conhecimento
suficiente para introduzir reformais racionais e não racionamento
cego, quem não dimensiona os recursos técnicos e humanos de forma
dinâmica em função das necessidades, quem não resolve os
constrangimentos ao fluxo de doentes, quem concede populares
tolerâncias de ponto sem cuidar de mecanismos de compensação e
rotatividade (só para as greves é necessário assegurar serviços
mínimos?), etc., etc., etc., quem governa deficientemente que assuma
integralmente as suas responsabilidades!
Basta! Não é justo nem aceitável que os médicos possam ser
responsabilizados pelas inevitáveis consequências negativas e
desnecessários riscos e prejuízos para os doentes que decorrem dos
cortes irracionais e dos erros e insuficiências de gestão e
organização dos responsáveis governamentais e seus representantes, e
da falta de condições adequadas para a prática de uma Medicina
humanizada e eficiente. É profundamente lamentável estar a perder-se
mais uma oportunidade para uma verdadeira, global e coerente reforma
do Serviço Nacional de Saúde.
*Presidente do Conselho Regional do Centro da Ordem dos Médicos
Subtítulos e destaques da responsabilidade da Redacção
8 de Janeiro de 2007 o2/n1545/t1/G.L
13 comentários:
:)
no coments...
Tão verdadeiro quanto as reiteradas queixas dos doentes que tantas vezes reproduz e de que sistematicamente faz uma crítica quase mordaz, por as entender "choradinhos"!
sorry
Ah: e caro "memi", não se venha com o aproveitamento subliminar do suposto apelo de CC ao recurso ao SU, porque isso é folclore. Esteve mal CC, mas isso já foi mais que discutido e a mensagem não era essa.
Agora que amiúde se instala o caos nas urgências, é verdade, verdadinha.
E se os médicos que lá trabalham alegam não ter culpas, e então se esta alegação é feita por alguém com responsabilidade na OM, que dizer do papel dos doentes?
...
É a velha máxima da recondução aos "sistema".
Pois a mim parece-me que têm, temos, todos culpa. Todos os actores do cenário!
E enquanto não houver esforços convergentes, nada se consegue!
estou tão contente por ter escolhido esta profissão... é tão gratificante....
Conheço a realidade descrita pelo Zé Manuel; já lá trabalhei. É verdade, mas infelizmente não única: conheci outras. Gostava era de saber medidas concretas que a NSQNU pode sugerir para nós, enquanto actores desta peça. Sem ofensa, claro. É que de facto não estou a ver.
CF
Belo texto.
Tenho lido os artigos do Prof JMSilva; escreve muito bem e com propriedade.
Este Post, que me perdoe o MEMAI, pela clareza do artigo nele publicado, não tem direito a comentários.
Excelente texto. Obrigado por o ter colocado aqui.
acabei de colocar este comentário no "que raio de saúde a nossa.blogspot.com", onde, foi, com as devidas indicações, reproduzido parte deste texto.
Reproduzo-o porque não se trata aqui de apreciar estilos literários.
Reproduzo-o porque entendo que devo.
Aí vai:
" (...) quem governa deficientemente que assuma integralmente as suas responsabilidades!”
Quanto pano para quantas mangas!!!!
Como já disse noutro sítio, muito gostamos nós de nos reconduzir ao "sistema" e, sobretudo, de alijar as nossas próprias responsabilidades!
... Não, não que não se saiba que há vários níveis de responsabilidade e de gestão!
... Não, não que não se saiba que existem as funções do estado, as funções da instituição e as funções dos indivíduos (no caso profissionais e doentes incluídos)!
Não, nada disso, isso sabe-se.
O pior é fazer!
Mas,
na senda de Deming, talvez seja melhor começar a pensar que não é só o Governo, o primeiro ministro, o ministro da saúde, a AR... que têm de fazer e ser responsabilizados. Não! É o Presidsente do CA, o director do CS, os Directores de Departamento e de serviço... cada um ao seu nível e de acordo com as suas competências!
Porque, sim(!) as competências existem, as atribuições também, mas é ver quem mais foge à sua efectivação.
Na legislação existente estão consagrados os seguintes princípios (entre outros) norteadores de uma boa gestão em saúde:
- controlo na utilização dos recursos;
- Financiamento em função do acto médico;
- Gestão previsional;
- Utilização plena da capacidade instalada;
- Sistema de avaliação de desempenho;
- Poderes de Direcção do Director de Serviço e de Departamento;
- Responsabilização pelo não cumprimento de objectivos.
...
O que te faltado afinal? ... Diria que... liderança e mérito.
E sim, também, a "educação" dos nossos utentes/doentes (sem esquecer a dos profissionais), que são na UE dos que mais recorrem ao médico e têm menor saúde!
É preciso, como também disse Deming, planear, fazer, controlar e agir.
As organizações de saúde e as pessoas que nelas trabalham, têm de desenvolver uma dinâmica de aprendizagem e inovação e, têm de começar por ter capacidade de adaptação às mudanças registadas e às transformações futuras.
Para tanto, lá vem ... a liderança... há que prestar contas e avaliar resultados.
E, nisto, os dirigentes, todos (e não só o Ministro) têm um papel fundamental na coordenação do processo!
É quase do domínio da filosofia saber se cada um de nós é realmente o que pensa que é, ou, se pelo contrário, é aquilo que outros pensam que é!
Cara NSQNU, não poderia concordar mais consigo: agora experimente passar isso à prática. Experimente confrontar directores de serviço (que estão nesse posto de forma vitalicia e em consequencia da antiguidade das carreiras) com os maus resultados da performance dos seus serviços. Desculpe a pergunta: conheçe alguem com coragem para o fazer?
Por acaso trabalho num hospital onde foram demitidos 2 directores por incompetencia. Caso rarissimo, diga-se. Ocorreu outro recentemente no S.João, parece...(sei do que li na Imprensa. Por sinal o senhor até ficou muito aborrecido. E de quem é a culpa? dos médicos que hierárquicamente estão abaixo? Ou da falta de força dos nossos dirigentes politicos???
Nos livros de gestão em saúde a teoria é muito bonita... a vida em Portugal é mais complicada que isso...
CF
Peço desculpa pela calinada ortográfica. Onde se lê "conheçe" leia-se "conhece".
CF
(...) quem governa deficientemente que assuma integralmente as suas responsabilidades!”
É a esta frase transcrita do excelente artigo (também por mim considerado), publicado na revista Tempo Medicina e assinado pelo Presidente da ARC da Ordem dos Médicos, que “naoseiquenome usar” dá a sua particular atenção e tece os seus comentários e extrapolações no que às “responsabilidades do cidadão, do doente, do funcionário de base, das chefias intermédias e superiores diz respeito.
Excelente teorização aqui nos é apresentada, sem dúvida alguma, no pressuposto de que a sociedade, na sua globalidade (o Estado) é responsável pelos actos que essa mesma sociedade pratica. E é-o para o bem e para o mal.
Mas para que os “deveres” possam ser exigidos pelo Estado tem o Estado também que velar por que os direitos estejam assegurados.
O direito à “organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal" (…) "à prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde" (CRP).
O Estado não é o Governo ou o “sistema”. Somos todos nós efectivamente, quer queiramos quer não.
Mas “Quem fecha serviços de atendimento permanente, quem pretende encerrar serviços de Urgência sem alternativas efectivas, quem não cuida de criar mecanismos de assistência aos idosos, quem se preocupa mais com o orçamento do que com os doentes”, etc, etc, referenciados no artigo, não são os doentes, os médicos, os enfermeiros, os DS ou os CA dos HH.
Estas determinações havidas sem o cumprimento do conceito atribuído a Deming e a que “naoseiquenome usar” também se refere: “ planear, fazer, controlar e agir” emanam do Ministério da Saúde.
É a ele, sendo assim, que os profissionais devem delegar as responsabilidades pelas “consequências negativas e desnecessários riscos e prejuízos para os doentes” decorrentes destas determinações, que apesar dos esforços, da dedicação e da carolice de muitos e dos “remendos” de última hora, não conseguirem evitar.
conheço este filme pelo qual passei até mudar de especialidade e com o qual ainda tenho pesadelos. mas acho demasiado simplista e não produtivo dizer que a culpa é dos governantes. ela não se resolveria apenas com mais médicos, com mais espaço, com mais atendimentos permanentes a funcionar: isso poderia apenas tornar-se em mais do mesmo.
a solução passa obrigatoriamente por uma gestão dos recursos (dos que temos e dos que não temos porque de facto eles são escassos e temos de viver com isso), com responsabilização das chefias locais, quer na escolha dos profissionais quer nos resultados apresentados.
ao caos descrito corresponde uma desarticulação inaceitável, por ex. com os sistemas de triagem a não serem aceites por quem tem de os praticar. como mero exemplo, neste campo a coisa teria de passar por serem os responsáveis de cada SU a definir, apoiados em evidências e estudos, o sistema de triagem a vigorar.
nos meus pesadelos, ao caos descrito pelo colega, acrescenta-se a memória de meia dúzia de colegas, usualmente os mais graduados e os que teoricamente poderiam ter uma visão mais global e uma maior capacidade de gestão, sentados impavida e serenamente na sala dos médicos.
vê como até concordamos?
se calhar até nos cruzámos no mesmo hospital... também me lembro desses médicos (ou de outros em tudo semelhantes).
CF
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