sexta-feira, outubro 03, 2008

Ensaio sobre a cegueira


A Justiça não é cega...há casos em que é obtusa !


"Risco de contágio é absolutamente remoto"
03.10.2008, Catarina Gomes


Responsável da associação de doentes Positivo considera que decisão vai levar a que mais pessoas se resignem quando perdem os seus empregos


O presidente do colégio de especialidade de infecciologia da Ordem dos Médicos, António Sarmento, não comenta a decisão do Supremo, mas diz que "um cozinheiro seropositivo devia continuar a trabalhar". "O risco de contágio é absolutamente remoto", tão remoto como "haver agora um tremor de terra enorme, abrir-se uma brecha e eu cair no centro da terra". Para o médico, é errado o pressuposto de que a saliva, o suor e as lágrimas podem transmitir o HIV/sida.


Comentando a decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), o deputado do Bloco de Esquerda (BE) e médico João Semedo considera "que não é justa uma sentença que se fundamenta numa relação de causa e efeito que não tem sustentação técnico-científica". "É uma Justiça que não é justa", diz Semedo, que, na sequência da notícia do PÚBLICO sobre a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa desfavorável ao cozinheiro, conhecida em Novembro do ano passado, apresentou um projecto de lei contra a proibição da discriminação de portadores de HIV/sida que acabaria por ser chumbado na Assembleia da República.

João Semedo não percebe que o STJ passe ao lado "daquilo que importa, o conteúdo, que é o abuso e prepotência contra um doente", assinando "por baixo um acto de discriminação de um doente" e "dando aval a um disparate técnico-científico". "Os portugueses têm dificuldade em perceber isso. Custa que por motivos de ordem processual a substância do que está em causa não possa ser corrigida.


"Amílcar Soares, presidente da associação de doentes Positivo, que primeiro recebeu o caso do cozinheiro e o encaminhou para o advogado, considera que a decisão do STJ vai contra todos os dados "de organismos internacionais, como a Organização Mundial de Saúde e a Organização Internacional do Trabalho". O responsável teme que este tipo de decisões ajude ainda mais "a diabolizar" quem tem HIV/sida, que haja "cada vez menos pessoas que apresentem publicamente a sua seropositividade" e trabalhadores que se resignem a perder os seus postos de trabalho "porque a Justiça não funciona".


Para o jurista do Centro de Direito Biomédico (Coimbra), André Dias Pereira, a decisão reforça a necessidade de "os médicos de trabalho respeitarem o dever de guardar o sigilo profissional" e "põe em evidência a necessidade de o colégio de especialidade de Medicina do Trabalho criar orientações sobre as profissões para as quais ser-se portador de HIV/sida pode constituir risco". Ao mesmo tempo, defende que no campo jurídico "compete investigar mais em que consiste o dever de reorientação profissional". Mesmo que entendessem que não tinha condições para ser cozinheiro, "era dever da empresa dar-lhe formação [para exercer outra função]", considera.

André Dias Pereira coloca também uma questão: por que razão a Ordem dos Médicos veio dizer que era seguro um cirurgião infectado com HIV continuar a exercer e não fez o mesmo aqui? "Os médicos têm grande responsabilidade social e têm que exercê-la", diz, questionando: "O cozinheiro é mais perigoso que o cirurgião" ou há aqui uma questão "de classe"? "Para uns, há perigo, para outros, não há perigo", acrescenta o jurista.


Para provar que o risco de um cozinheiro transmitir HIV/sida "é apenas teórico", a Associação Médicos pela Escolha organizou, no ano passado, em Lisboa, um almoço confeccionado por cozinheiros infectados. Vasco Freire, médico e presidente da associação, diz que se queria demonstrar que a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa não tinha fundamento. O clínico considera agora "surpreendente, do ponto de vista médico e científico", que o Supremo tenha confirmado a decisão. "Contraria todos os pareceres científicos de infecciologia. É inacreditável e profundamente injusto que situações destas aconteçam.


"O Conselho Superior da Magistratura não se pronuncia "sobre a bondade ou não das decisões judiciais", refere a juíza-secretária Maria João Faro, não comentando o facto de a decisão assentar em pressupostos que a comunidade científica contesta, como o facto de o HIV se poder transmitir através de saliva, suor e lágrimas.

4 comentários:

Anónimo disse...

Embora tenha consciência de que a decisão do STJ é dura e mesmo brutal, temos que tomar em consideração as circunstâncias em que foi tomada.

Um cozinheiro trabalha com objectos cortantes, como facas, garfos e afins. Dada a azáfama de uma cozinha é normal, comum e extremamente provável que o cozinheiro a dada altura da sua actividade se corte inadvertidamente e possa deixar cair uma ou mais gotas de sangue sobre a comida que vai ser servida aos clientes. Embora tenha consciência de que a SIDA não se transmita pelo suor e pelas lágrimas, ninguém contesta que possa ser transmitida pelo sangue.

Uma pessoa nessas circunstâncias não pode continuar a exercer a profissão, da mesma forma que um juiz esquizofrénico ou maníaco-depressivo não pode fazer avaliações isentas e imparciais. Daí a decisão da entidade empregadora: a caducidade do contrato de trabalho, i.e: a impossibilidade de o trabalhador continuar a exercer a sua profissão nos mesmos termos em que vinha fazendo.

Qualquer outra opinião apenas pode ser hipocrisia à luz da lei.

Anónimo disse...

E como é que se processa o contágio após cairem as tais gotas de sangue na comida???? Será melhor contratar alguém com muita imaginação para explicar ...

É uma decisão completamente rídicula ou obtusa como foi dito, só possível num país em que os tribunais vivem ao lado da realidade concreta das coisas.

De um enfermeiro que trabalha todos os dias com seropositivos e nunca sonhou que ser possível existirem estas inteligências nos tribunais

NauCatrineta disse...

Fui "colega" de debate em algumas mesas redondas com o médico-deputado João Semedo durante a campanha do referendo sobre a liberalização do aborto. Aquilo de que ele se queixa agora - «uma relação de causa e efeito que não tem sustentação técnico-científica» - fez parte da sua argumentação, e da do seu partido, durante o referendo. Não fico feliz pelo resultado desta (errada) decisão judicial, mas não se pode querer a "sustentação técnico-científica" só quando dá jeito! Se se dá força a argumentos de carácter meramente político, é essa a cultura que estamos a promover e todos acabaremos vítimas dessa falta de respeito pela realidade.

Anónimo disse...

Então se o cozinheiro se corta e deixa cair umas gotas de sangue na comida, vai servir esse prato aos clientes? Achamos todos que isto pode acontecer nas cozinhas dos nossos restaurantes, mesmo sem VIH? Eles servem-nos comida com sangue quando se cortam..? E têm gotas de suor a escorrer pela face a a cair nos pratos? Com cabelos já todos devem ter testemunhado, agora com sangue, acho que nem nas piores tascas...

Mas isto só confirma o tipo de juízes que temos... a decidir sobre assuntos nos quais são totalmente ignorantes. e qdo assim é, em vez de se basearem na ciencia e nos experts, baseiam-se nos seus próprios preconceitos e ideias. E ainda há quem defenda que deveria haver júris a decidir, constituidos por pessoas da sociedade... se os juízes que percebem de justiça mas são ignorantes nos temas que julgam, decidem assim, imagine-se os leigos que são ignorantes quer nos temas como na justiça! Havia de ser uma luta de opiniões pessoais, preconceitos, erros, crenças, etc, etc! É isto que queremos?