De um reputado especialista da área dos cuidados de saúde primários, professor na Faculdade de Medicina de Lisboa, transcrevo um texto recusado pelo Público.
Leiam e reflictam na última frase do penúltimo parágrafo.
Comparem com a recente morte de Miklós Fehér.
Ambos morreram no seu posto de trabalho.
Como foi o tratamento mediático?
Do Fehér, jogador suplente, em vésperas de dispensa, transformado em ídolo.
Da médica, nem o seu exemplo serviu para a comunicação social deixar de instigar a população contra os médicos.
"Em artigo de opinião no “Público” de 23 de Janeiro último (“Guimarães: o retrato na nação”), Miguel Sousa Tavares (MST) tem, a dada altura, a seguinte frase: “Os médicos não fazem a mínima ideia dos danos que os seus falsos atestados causam à produtividade das empresas e à saúde das relações laborais. Por alguma razão somos o país europeu com mais baixas por doença anualmente”. Presumo que MST sabe português suficiente para distinguir entre uma afirmação referente a um grupo restrito e uma generalização a um grupo inteiro. Do mesmo modo, não o considero inexperiente ao ponto de deixar escapar frases por engano. Concluo por isso que MST engloba todos os médicos nesta afirmação, estando eu mesmo, médico de família em Lisboa, incluído no conjunto. Declaro, para que conste, que o atestado de ignorância que MST me passa sem que lho tenha solicitado é tão falso como os atestados de Guimarães referidos no artigo.
MST descreve episódios e generaliza a partir deles. Porque há médicos que passam atestados falsos, todos os médicos são ignorantes sobre o impacto negativo desses atestados. Não dito, mas obviamente subentendido, todos os médicos passam atestados falsos. MST, naturalmente, não arrisca directamente tal afirmação e, seguramente, baterá no peito refutando tamanha monstruosidade, mas a insinuação está lá.
MST não se fica por aqui. A tentativa de associar o elevado número de baixas por doença em Portugal a um eventual laxismo ou corrupção dos médicos portugueses é extraordinária. Pelos vistos não lhe ocorreu o óbvio: perguntar-se sobre quais os motivos subjacentes aos pedidos de baixa. MST ignora, ou não quer saber, que condições laborais deficientes e nível socio-económico baixo acarretam maior incidência de problemas de saúde e, consequentemente, de baixas. Mas há mais. Cito um colega que comentava o mesmo texto de MST: “Por princípio, o médico confia na pessoa que o procura (é essencial para a relação médico-paciente) e muitas das queixas que justificam as "baixas"/incapacidade temporária para o trabalho são fundamentalmente subjectivas, o que aumenta as dificuldades de avaliação e de decisão – conhecerá MST melhor do que nós métodos de diagnóstico ou escalas para a incapacidade funcional, para a dor, o sofrimento, a tristeza, a angústia, o desespero...?”
Porque não está interessado ou porque ignora (o que duvido, confesso) MST não refere nunca a pressão por vezes subtil, por vezes brutal, a que os médicos são submetidos no dia a dia para atestar incapacidades para o trabalho por motivos que não são estritamente de saúde. Porque a sociedade civil e laboral não tem a flexibilidade suficiente para encontrar soluções para os seus conflitos e dificuldades resolve-se o problema “adoecendo”, e venha agora o médico recusar-se a passar a baixa ou o atestado, se for capaz. A pessoa fica muito nervosa ou não lhe dá jeito ir prestar declarações a tribunal? Não há problema, é aconselhada a faltar à audiência e a pedir ao médico o atestado respectivo. Naturalmente, nunca existe nada escrito a sugerir tal procedimento. O mau da fita, de qualquer modo, está sempre identificado: é o médico, tome ele a atitude que tomar. Não há rigorosamente nada que defenda o médico de uma situação destas. Estão documentados múltiplos relatos de agressões verbais e físicas a médicos que se recusaram a ceder à pressão. Uma médica de família foi, há alguns anos, abatida a tiro por se negar a passar uma baixa.
Evidentemente que nada do que acabo de descrever desculpa ou justifica a produção de um atestado falso, ou atenua milimetricamente as situações concretas descritas por MST. Não admito é que MST venha agredir um grupo profissional inteiro por causa de um problema cuja origem se encontra, gritantemente, noutros locais e contextos que não no conjunto da prática médica.
Armando Brito de Sá
Médico"