Intervalo
com a Devida vénia transcrevo este post de um bloguista seguidor, o nome do blogue é "de médico e louco..."
Ando longe do notebook há algum tempo, não sei se por falta de tempo ou má vontade de escrever, mas achei que era hora de pôr os dedos para mexer um pouco. Outro dia até me perguntei a razão de ter um blog. Dar notícias a quem está longe? Tentar arrancar algum comentário de algum desocupado que leu o que escreveu? Carência afetiva? A razão eu não sei ao certo, mas tem sido interessante reler o que escrevi e acompanhar uma certa cronologia do que tenho vivido desde que deixei meu casulo. As mudanças ocorrem muito rápido e, de completo acordo com o que disse meu amigo Peruca certo dia, os dias têm, de fato, durado muito menos do que 24 horas.
Hoje voltei de mais um dos plantões de fim de semana, em que na sexta eu preciso dormir cedo para estar bem no sábado, passo longas horas trabalhando e chego em casa no domingo à tarde, desmaio no meu colchão de mola e acordo no fim do domingo, pronto para comer, assistir o fim do fantástico e dormir de novo. Em outras palavras, fim de semana inexistente. Sem falar o anterior, que também inexistiu para vida social. Mas não escrevo tais palavras em tom de murmuração, porque se me submeto e passo tantas horas dentro de um hospital, em privação de sono e comida, ganhando muito menos do que poderia em outros lugares, é porque acho que vale a pena. E vale mesmo.
Na sexta-feira passei para o meu terceiro estágio dentro da residência. O primeiro foi o de neonatologia com aqueles seres minúsculos e confesso não ser a especialidade que mais me agrada. Apesar de estar fazendo pediatria, gosto de interagir com os pacientes e não só com seus familiares, mantendo um nível de conversa e compreensão, por mais que essa conversa seja apenas: não quero que põe o palito! Pronto, interação. No segundo estágio fui para o outro extremo, trabalhando com adolescência e reumatologia. Foi um bom estágio e em outra hora comento sobre ele. Agora estou na enfermaria, que acredito ser o lugar onde mais aprendemos.
Na verdade, o que me motivou a escrever o post hoje foi algo bem específico. Conheci na enfermaria o Gabriel, um gordinho figura de 6 anos. Nasceu com um semblante típico que todos os comediantes aparentam ter. O jeito de sorrir, o modo alto de falar e o simples fato de estar acima do peso, que dizem ser um fator de felicidade (não de saúde). Ele tem Fibrose Cística, uma doença hereditária que faz com que as glândulas do corpo sejam disfuncionais. Em outras palavras, o intestino funciona mal, há dificuldade de digestão alimentar e um acometimento respiratório progressivo muito grave, com pneumonias freqüentes e outras infecções. É um paciente que simplesmente não sabe qual é a sensação de respirar bem. O normal que ele conhece é sempre ter falta de ar, tosse freqüente e longas internações quando há uma infecção mais séria. Quem é asmático sabe do que estou falando, mas é muito mais sério.
Quando entrei em seu quarto ontem pela manhã ele já estava de banho tomado, com o cabelo liso de lado, os olhos azuis quase saltando e um sorriso enorme: doutor, vou de alta né?! - Calma Gabriel, senta pro tio te examinar (que mania desagradável de me intitular tio das crianças, me envelheçendo antes da hora). Sua freqüência respiratória era normal, seus dedos tinham um aspecto de baquetas (baqueteamento digital), algo típico de quem têm privação de oxigênio por muito tempo. Seus pulmões estavam cheios de ruídos, mas esse era o seu “normal”. Agora estava bem. Completava seu 44º dia de internação, tomando antibióticos que nós provavelmente nunca precisaremos usar. Sem esquecer do fato de que não há um dia sequer na sua vida que ele passará sem o uso deles. Nem esquecer dos fisioterapeutas, eternos aliados na qualidade de vida desses pacientes.
Discuti seu caso com uma médica experiente no assunto, que liberou a alta do Gabriel. Mas conversamos um pouco sobre ele e a conversa não foi nada animadora. Em minha formação eu acompanhei poucos casos assim, pois é uma doença mais rara. Mas na Santa Casa eles têm uma experiência grande e acompanham muitos pacientes encaminhados de várias partes do país. Ela me explicava que há alguns anos a expectativa de vida de uma criança com fibrose cística era de 10 anos. Hoje, com muito esforço e estudo, subiu para 30 anos. Rápidos e passageiros 30 anos. Como é difícil esclarecer a mãe que muito provavelmente verá seu filho morrer. Nenhum pai espera isso. E a médica repetiu e enfatizou: nós sabemos que ele vai morrer, não é uma previsão, é um fato. E, analisando a forma como vivia o Gabriel, concordei com ela. Fomos até advertidos que pacientes como ele, vão de alta aparentemente muito bem, mas muitos retornam em pouco tempo ao pronto-socorro com uma insuficiência respiratória grave e morrem por isso.
Depois dessa conversa toda, enquanto preparava a alta no computador, lá veio o Gabriel, se debruçou no balcão e ficou me cobrando a sua alta. Em poucos minutos entreguei os papéis e a receita a sua mãe e me despedi daquele garoto esperto, com sua máscara (para proteger outras crianças das bactérias resistentes que carregam nos pulmões). Ele não parava de falar das saudades de seu cachorro e sua cama.
O restante do plantão foi bem tumultuado, mas foi bem difícil pensar em outra coisa, senão na história do Gabriel e outros que sabem dar muito valor ao ar que respiram.