Aborto
O Mata-Mouros refila quando vê a esquerda folclórica a rejubilar pela captura do Saddam, depois de contestar a guerra. Até certo ponto, com razão.
Eu refilo quando vejo a "direita folclórica" (e acrescento hipócrita) e os seus representantes (até o CDS/PP) a chorarem lágrimas de crocodilo pelas coitadinhas das mulheres que se sujeitaram à IVG, particularmente depois das corajosas palavras do Bispo do Porto.
Depois de inventarem filmes, vídeos, fotografias, casos, adulterando a ciência, criando devaneios filosóficos, dando vida ao zigoto, reconhecendo a mórula, apadrinhando a blástula, idolatrando o blastocito, exigindo ao embrião um bilhete de identidade e obrigando o feto a pagar impostos, conseguiram que o referendo lhes desse razão. Foi uma ditadura sem ditador. Mas conseguiram o que desejaram. Muitos continuaram a ganhar rios de dinheiro.
Para depois abandonarem a pessoa após o nascimento. Não é novidade que a direita é individualista e a esquerda colectivista.
Por outro lado, nunca tive simpatia, quer por médicos, quer por enfermeiros, que enriqueceram com o azar, a angústia e insegurança alheia. Fazer um aborto era (ainda é) ilegal, não se passavam recibos, não se pagavam impostos. Foram milhares, milhões de contos que foram gastos em actos clínicos, por vezes em condições deploráveis, sem higiene, sem qualquer apoio psicológico às mulheres que eram obrigadas a abortar.
Muitas vezes fui (sou) procurado para receitar medicamentos ou indicar moradas. Nunca o fiz. Sabia que essas mulheres poderiam correr muitos riscos. Sempre aconselhei a deslocarem-se a Espanha. Era sempre um investimento muito mais seguro. O Público desde há anos que traz aquele pequeno anúncio amarelo ... com morada em Badajoz.
Assim aconteceu na semana passada quando uma jovem irrompe pelo consultório, aos prantos, exigindo que lhe desse medicamentos para abortar.
Sabia que tivera uma nascimento sem afecto, uma infância atribulada, uma adolescência atribuladamente inconfessada. O afecto passou-lhe sempre ao lado.
Há alguns anos encontrou a bonança, a serenidade, quase o sossego. Juntou-se com alguém que sempre amou. Durante 24 meses lutou para engravidar, para ter um filho desejado.
Há meses conseguiu. Estava contente. Ia ser mãe. Poderia ser feliz e dar a alguém aquilo que não teve.
"Vou ali e já volto." Disse-lhe o companheiro um dia. Não voltou. Ainda não voltou. Mas voltou a solidão, a tristeza, o desassossego.
"E agora, doutor, que vou fazer! Estou desempregada. Estou grávida. A casa está em nome dele. São quarenta contos que vou ter que pagar. Do subsídio de desemprego recebo 40 contos. Os meus pais já me disseram que não é nada com eles. A mãe do X, também já disse que o problema não é dela. Não consigo emprego. Tem que me ajudar. Não posso ter este filho! Não lhe posso dar, o que lhe queria dar!"
Impotência, foi o que senti, mas nada lhe poderia fazer. Fiz-lhe ver que tinha direitos. (Mas não imaginei nenhuns!).
Falei-lhe em Espanha, mas até me envergonhei. Para quem está abandonada e o que ganha será para a renda, senti-me ridículo.
Senti ódio para com a sociedade hipócrita, que cria estes casos e não os pode resolver.
Foi mais uma consulta gratuita no consultório particular.
Não sei como acabou ou acabará esta história...
2 comentários:
Infelizmente.... situação ainda comum no nosso Portugal em pleno século XXI....
Eu sou a favor do aborto... acho que ninguém faz um aborto porque simplesmente acordou de manha e resolveu fazer um aborto... penso que deve ser uma decisão sobre a qual se pondera... e se toma por poucas ou várias razões...
Seja como for não deve ser facil para quem as toma...
A legalização do aborto não vem obrigar ninguem a fazer abortos, apenas a dar oportunidade a quem os quer fazer que os faça com as condições minimas de cuidados em vez de ser num vão de escada ou sujeita a todo o tipo de tortura fisica ou psiquica....
Era bom que os politicos de direita entendessem isto... mas infelizmente as suas capacidades não dão para tanto....
/PB
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