"Se as vítimas provocam tanta emoção é porque a sociedade está ansiosa por encontrar vítimas."
Só assim se comprende que uma simples úlcera da córnea já dê direito a reportagem nos jornais com foto de corpo inteiro.
Condições: ser jovem, feminina, dizer mal dos médicos, dizer mal do Serviço Nacional de Saúde, fazer a elegia de uma clínica privada. Mesmo que se digam as maiores enormidades, quer a utente, quer o senhor jornalista.
Ou que um doente hipertenso e diabético(quantos milhares haverá neste país!) tenha honras de uma reportagem televisiva no prime time
(Oh Meu Deus! Protejei-me dos media!")
e onde se afirma que o Estado, bla bla bla bla bla.
Se a reportegem procurasse elucidar os 75% de hipertensos e diabéticos que não se tratam ou que desconhecem a sua doença, que vivem permanentemente no fio da navalha, apoiaria...
Mas também houve bom Fio do Horizonte, em 27 de Agosto, no Público.
Reproduzo algumas passagens da crónica do Eduardo Prado Coelho.
"O acontecimento teve uma enorme repercussão. Uma mulher jovem, judia, transportando no metro parisiense o seu bebé, é vítima de um atentado, mais concretamente de uma violação colectiva, por um grupo de negros e muçulmanos, perante a indiferença de outros passageiros que se encontravam no outro extremo da carruagem. Tendo tido a coragem de denunciar este crime anti-semita, a mulher, que os “media” designaram como Marie L, foi considerada um caso exemplar da violência racista crescente em França. O próprio presidente Chirac se emocionou e defendeu que se criassem medidas para evitar esta vaga inquietante. Pouco tempo depois veio a descobrir-se que todo o depoimento era completamente falso. Marie L. inventara tudo."
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"Mas ela apostou sobretudo na repercussão mediática do que ia ficcionalmente construindo: ela tornou-se verdadeiramente heroína da sociedade"
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"Por outras palavras, vivemos numa situação em que as vítimas se transformam em heróis mediáticos. Se isto sucede, é porque não é hoje fácil ser herói. A forma de ser herói tem a ver com o crescimento do individualismo, que deixa o indivíduo entregue à sua própria solidão. Como declara Lucien Karpik, o próprio processo judicial se alterou. Anteriormente, julgava-se em nome do interesse geral. "Agora passou-se a um processo organizado como uma espécie de terapêutica da vítima. Com a ideia implícita de que esta é a única maneira de apagar o trauma. Hoje tudo está preparado para que a vítima se transforme no centro do processo. Assiste-se assim a um privatização da justiça que, sem que haja debate, se põe ao serviço de uma causa privada."
"Se o leitor vir com atenção um telejornal, verifica que se trata de encontrar vítimas da sociedade e que essas vítimas pretendem designar um nome que represente o rosto da culpa."
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"Quando podemos dizer que a culpa é de X ou de Y, podemos dormir descansados. A sociedade contemporânea ama a compaixão. E as vítimas encontram no processo que as vitimiza o momento de glória que procuram ao longo de uma vida sem grandeza".