terça-feira, setembro 09, 2003

Miséria Humana ou Coisas Que Uma Certidão de Óbito Esconde

É tanta a minha revolta contra a minha espécie (a humana, para quem não saiba!) que embora esteja num dilema, com a mente a puxar-me para o computador e os olhos a encerrarem-se e a puxar-me para a cama, com a revolta apossar-se de mim, decido escrever este bilhete.
Quase que ao vivo. Mas este blogue vive disso. Tentar explicar coisas que por vezes nem eu as compreendo.

Há duas horas emiti mais uma certidão de óbito.
Morte não natural, i.e., morte violenta. Entrada na urgência já cadáver.
Processos burocráticos mais morosos. Confirmação da morte. Comunicação à autoridade civil com ofício e impresso próprio, esta comunica com a autoridade judicial de turno que decide se prescinde ou não da autópsia.
Caso prescinda, foi este o caso, pois a causa da morte era óbvia, devida a um incêndio no domicílio, por inalação de monóxido de carbono e não por carbonização.
Viúva, meio rural, iniciam-se os contactos para a reclamação e entrega do corpo.
1º telefonema: "não tenho nada a ver com isso, o marido da viúva apenas me pagou para tratar dos assuntos bancários dela em vida. Se já morreu, não é nada comigo."
2º telefonema: "eu era sua cunhada, mas como o marido já morreu, não quero saber mais disso. Ela não gosta de mim."
3º telefonema: "Oh senhor doutor, eu sou sobrinho dela, mas ela não me ligava, eu ainda estou em estado de choque (não com a morte, mas sim com o incêndio!). Morava ao pé dela, mas compreende, não quero saber de nada".
4º telefonema: "eu sou uma vizinha, sei que ela deve ter um filho algures na Europa, mas não sei mais nada e não posso tomar conta do corpo."
5º telefonema: " Sr doutor, a minha agência funerária só pode responsabilizar-se depois de alguém assumir o pagamento".
6º telefonema: "Senhor provedor, tenho um favor a pedir-lhe em nome de uma cadáver, para que tenha um funeral minimante digno, pois todos os familiares com quem falei se recusaram a reclamá-lo."
7º telefonema: "Para o cangalheiro: Senhor, já pode escolher a urna, pois a Santa Casa da Misericórdia (não é a de Lisboa) encarrega-se de tudo."

Será que o desrespeito pela morte é característico da espécie humana. Se não há quem sinta a perda, um cadáver que pertenceu a um membro da nossa espécie já não tem valor?

Esta mulher pressentia que a sua morte seria um problema para a sociedade.

Assim se compreende que se tenha fechado em casa, com todas as portas trancadas com grandes trancas de madeira, que tenha fechado todas as portas interiores à chave, que tenha incendiado todos os cortinados dos quartos e se tenha deitado sossegadamente à espera da morte e da carbonização, para desaparecer deste mundo em cinzas.

Consta que um dia antes (como é habitual nos suicidas, procurarem alguma ajuda na véspera) foi encomendar-se a Fátima.

Eu vou dormir mergulhado na hipocrisia desta sociedade!

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