terça-feira, setembro 02, 2003

Por Mais Brutos e Distantes Que Às Vezes Possam Parecer...

Era uma vez um médico que entrou de serviço, num domingo de manhã, numa unidade de saúde portuguesa.

Pronto para iniciar o seu turno de 12 horas, que o levaria até às 21h, fresquinho, depois de ler as gordas do Público, depois de um pequeno almoço substâncial, já com dois ou três cafés ingeridos e depois de espreitar o movimento da sala de espera, estava apto para iniciar o seu trabalho. Feliz e satisfeito, senta-se e aguarda a entrada do primeiro doente:
- “Então minha senhora, diga lá de que se queixa”, pergunta afavelmente.
- “De uma dorsinha no peito e como sofro do coração, vim ver o que se passa”, responde a doente de meia idade, com voz trémula, talvez com medo da reacção do médico.
- “Diga-me se lhe está a doer agora e há quanto tempo lhe dói”, perguntou o médico.
- “Agora é só uma dorsita, e dá-me muitas vezes”, responde a utente do Domingo de manhã, acrescentando de imediato:
- “Mas deve ser tudo dos nervos, porque ando muito nervosa”.
Uma rápida observação e o médico aceitou o diagnóstico proposto pela doente: crise de ansiedade.
- “Vai fazer ali um tratamento e dentro de meia hora já se sentirá melhor”. Disse-lhe o médico, prescrevendo aquela droga muito antiga, de acção rápida, politicamente incorrecta, mas de uma ajuda inexcedível nestes bancos e que a doente levaria à enfermagem para a administração.
Cerca de uma hora depois, novamente com a doente, perguntou o médico:
- “Então, está melhor?”
- “Oh senhor doutor, nem se compara, já não me dói nada”.
- “Então pode-se ir embora e não deixe de consultar o seu médico de família”.
- “Está bem senhor doutor, mas se me pudesse fazer um favor?”, diz a doentinha com a voz quase inaudível.
- “Diga lá o que precisa.” disse o médico, já adivinhando o favor.
- “É que a minha psiquiatra está de férias e acabaram-se os medicamentos dos nervos.”
- “Está bem, diga lá quais são.” Abre então o saco de plástico e despeja meia dúzia de caixas de medicamentos em cima da secretária.
- “Pronto já está. Pode ir-se embora".
Uns segundos de silêncio, uma certa relutância em se levantar, como que à espera que o médico perguntasse, como na mercearia:
- “Então minha senhora, deseja mais alguma coisa?”
- “Ai senhor doutor, precisava de um grande favor.”
- “Um grande favor? Mas que é que precisa agora?”
- “Ai senhor doutor, pela sua saúde, é para a minha filha, que tem 20 anos!”, diz começando a soltarem-se-lhe as lágrimas.
O tempo vai passando, o médico vai-se incomodando, mas como ainda está fresquinho, pergunta:
- “Então o que é que se passa com a sua filha?”
A doentinha abre a sua mala, retira um papel e diz:
- “Se me pudesse passar esta análise para a minha filha, que o seu médico de família também está de férias e foi ele que a mandou a esta médica e disse-me que era urgente.”

Abro o papel, leio o cabeçalho (de uma colega ginecologista) e a prescrição apenas de uma análise: CA 125.
Abri bem os olhos, mirei o facies triste da doente e pensei para mim:
- “Aqui está o verdadeiro motivo da consulta”.
O Cancro.
Provavelmente, quer o médico de família, quer a ginecologista suspeitam fortemente que a jovem deve ter um cancro do ovário. E a mãe, com o seu instinto maternal, também não estará a augurar nada de bom para a filha, caso contrário, não se teria sujeitado, numa manhã de Domingo a tal aventura.
Suspiro eu, pensando o que poderia fazer para lhe resolver o problema e cogitando só para mim: se esta história se passasse no final do turno de banco, como reagiria eu? Será que, estando com fome, cansado, olhando insistentemente para o relógio e aguardando a rápida entrada do meu substituto, teria os sentimentos com um limiar tão baixo, para não deixar de lhe fazer o favor? Ou não?
Aquilo que muitos esquecem é que os médicos também têm sentimentos, por mais brutos e distantes que às vezes possam parecer...

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