segunda-feira, novembro 17, 2003

Na Recordação das Vítimas da Estrada - A Lembrança de Quem as Recebe

Um dia depois, mas é sempre dia para nos lembrarmos desta endemia nacional.
Parabéns ao Paz na Estrada e à homenagem do homenagem.
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Em 20 anos de profissão, já assisti no imediato a muitas vítimas de acidentes mortais mas nossas estradas. Muitas histórias poderia contar.
O mais dificil é dar a notícia, e quando a temos que dar a familiares ou amigos a situação torna-se mais amarga.

Há mais de dez anos, o filho de um conhecido meu teve um acidente rodoviário. Como se tratava de pessoas conhecidas na zona, rapidamente a notícia se espalhou e chegou ao conhecimento dos pais. Ainda antes do transporte do sinistrado, já a mãe se encontrava na sala de espera aguardando ansiosamente a chegada do filho trazido pelo 112 da altura, o 115. Desconhecia eu ainda quem era o sinistrado e como tinha visto a mãe, sempre pensei que lá estaria por outros motivos.

O sinistrado era muito jovem, 17 anos, e logo após a entrada, enquanto executava os primeiros gestos automáticos para me inteirar do seu estado (palpar o pulso, ver se respira, se está inconsciente) um bombeiro aponta-me para a cabeça que se encontrava coberta por várias compressas. Ainda antes de calçar as luvas, levantei algumas compressas e deparei-me com uma ferida craneana contusa, perfurante com saída de massa encefálica para o exterior. Era um milagre estar ainda vivo. Mas estava.

Entretanto, chegado o pai já com a notícia de que o filho tinha tido um acidente e de que teria uma ferida na mão. Mal me viu, chamou-me e a sua primeira pergunta foi: a mão salva-se ou não? Nem compreendi a pergunta e respondi-lhe que estava ocupado e que já voltaria para falar com eles. Voltei de imediato para junto do corpo, onde já se procedia a outros gestos básicos.

Depois de tomar a decisão de o transferir de imediato para um hospital central com neurocirurgia, pedi a um enfermeiro para me chamar os pais do sinistrado e entrei noutro gabinete mais isolado para comunicar a gravidade do seu estado e a transferência. Batem à porta e vejo entrar o casal amigo, levanto-me e explico para aguardarem um pouco no exterior, que já os atenderia. Explico que estou à espera de um casal cujo filho teve um acidente de automóvel. "Mas somos nós!", exclamam eles.

Nesse momento fiquei eu sem fala e deixei-me cair na cadeira. Tinha estado com toda aquela família na véspera a comemorar o aniversário do único filho.
E o pai só me perguntava: mas como está a mão? Salva-se a mão?

Arranjei coragem para ser só médico e dizer: "O vosso filho está muito mal! Vai já ser transferido para outro local mais especializado e temo que qualquer coisa de mal lhe possa acontecer durante a viagem. Tem uma ferida muito grande na cabeça e está em coma. A mão de facto está muito mal, mas nem me preocupei. Não se pode perder tempo."

O pai dá um murro na mesa e desata a correr para o seu veículo para perseguir a ambulância que já se dirigia para o local da evacuação.

Ao quarto dia, foi mais uma vítima mortal da sinistralidade rodoviária, que entrou na estatística apenas como ferido grave ...

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